Prólogo.
Sentia as areias em meus braços enquanto olhava para o céu. Meu pai fazia
o almoço e tudo o que eu queria era ficar deitada na praia, tentando esquecer
que a pesca não tinha sido tão boa naquele dia. Superaríamos com certeza.
O sol ofuscava minhas vistas, mas não muito, então pude ver algo
plainando no céu. Uma silhueta muito grande, com asas enormes. Pensei por um
instante que fosse um pássaro, mas algo nele estava estranho. Percebi que tinha
quatro patas, que se mexiam no ar juntamente com suas asas. Aquilo com certeza
não era um pássaro.
Levantei-me para observar melhor, mas o misterioso animal havia
desaparecido.
A luz que entrava
pela pequena janela encontrava meus olhos ainda sonolentos. Sentia-me fraca e
completamente perdida. Onde eu estava?
Esfreguei meus olhos tentando me lembrar do que havia acontecido comigo.
Um grande branco preenchia minha mente. Levantei-me assustada e me deparei com
as grades que me prendiam. Uma sensação estranha percorreu meu corpo. Porque eu estava presa? Olhei em volta.
Era um lugar nada acolhedor, o piso em cimento, assim como as paredes, que
ainda estavam manchadas com a tinta velha. A parede da janela continha diversas
manchas de umidade e a cama, que um dia também foi branca, trazia um fino
colchão rasgado. Tudo parecia estar enferrujado e com mofo.
Não me lembro de ter dormido
aqui... Não me lembro de nada...
Olhei para o lado e vi um prato de comida. Não, provavelmente não podia
chamar aquilo de comida. Embrulhou-me o estomago. Tentei não olhar novamente
para aquilo.
O enjoo aumentou quando respirei aquele conjunto de odores. Odeio coisas
úmidas, e aquele cheiro forte lembrava-me constantemente disso. Era uma mistura
de mofo, comida velha, terra, mato e roupas sujas.
Encostei minhas costas na parede. Esfreguei meus olhos mais uma vez,
tentando imaginar que tudo aquilo era um sonho, e que logo, logo eu acordaria e
finalmente entenderia o que estava acontecendo. Mas, ao abri-los novamente,
tive vontade de chorar.
Meu Deus, quem sou eu?
Respirei fundo, engoli o choro e voltei a observar o lugar. Havia
diversas outras celas, pude observar uma em frente a minha, onde se encontrava
um homem mal vestido, com os olhos semicerrados, encostado naquilo que chamavam
de cama.
O homem parecia calmo, quieto e perturbado ao mesmo tempo. Seus cabelos não
tão grisalhos, compridos e mal cuidados apoiavam em seu ombro. Provavelmente
ele sabia mais coisas do que eu. Talvez ele pudesse me explicar o motivo de
tudo isso. Não custava tentar...
- Senhor – chamei sua atenção – desculpe incomodar, mas pode-me dizer
onde estamos? – perguntei.
Ele levantou um pouco a cabeça, olhou para mim com os olhos ainda se
fechando e voltou a abaixá-la.
- Presos – respondeu indiferente.
Aproximei-me um pouco mais da grade. Precisava de mais do que isso.
- Por quê? – eu o olhava atentamente.
- Você? Eu não sei, mas eu roubei uma coisa – disse ainda encostado, sem
se importar com a minha preocupação.
Senti um aperto no coração, eu estava completamente perdida, esquecida e
abandonada. Não fazia ideia de quem era o homem cabeludo com quem tentava
conversar e sempre que eu pensava em qualquer coisa relacionada a mim, nada
passava à minha mente.
- Eu não me lembro de nada – confessei.
- Então provavelmente estava envolvida com drogas... – ele finalmente
olhou para mim, com um sorriso escondido.
- Eu não me drogo.
- Você não se lembra – ele riu.
- Não, eu realmente não me drogo – retruquei.
Ele virou novamente o rosto, voltando como estava inicialmente. Apático.
- Pois é... Eu não posso te ajudar – disse.
Sentei-me ao lado da grade enferrujada que me prendia, encostando minha
cabeça na parede.
- Qual seu nome? – perguntei.
- James.
Respirei fundo e tentei novamente.
- James, eu preciso sair daqui.
Ele levantou, rindo, segurou as grades com as duas mãos e olhou firme
para mim.
- Faça-me rir! É impossível, gracinha. Você não vai conseguir sair daqui,
compreende? – Ele me olhou atentamente, pensando em algo. – Principalmente
porque você deve ser perigosa, a cela que você está é reservada para os piores
– ele sorriu maliciosamente.
- Alguém deve ter me confundido – afirmei.
- Não, ninguém se confunde aqui – ele colocou o rosto entre as grades. –
Conte-me a verdade. Qual seu poder?
Seus olhos verdes miravam os meus de um modo semelhante ao de uma pessoa
louca e maníaca. Estavam fixos, curiosos e com uma esperança da qual não
entendi.
- Não tenho nenhum poder, do que você está falando? – disse ainda mais
perdida do que nunca.
- Não se faça de desentendida, não pode ter se esquecido do próprio poder
– gritou.
Ele gesticulava demais para uma pessoa normal. Era estranho observá-lo,
ora ele estava quieto demais, ora elétrico demais.
- Eu não estou te entendendo... Falo sério – tentei convencê-lo.
- Ah... Quer saber? Tanto faz! – gesticulou jogando os braços para cima e
arregalando os olhos, se virando para sentar novamente na posição inicial.
Que cara louco...
Cheguei a me perguntar se realmente tinha sido uma boa ideia conversar
com ele. Mas, sinceramente, eu não tinha outra pessoa, e precisava de
respostas.
- O que você roubou? – perguntei baixinho.
- A mente de uma mulher.
- O quê?! – gritei.
- Olhe só – ele se virou e veio andando ajoelhado até a grade e olhou
para mim – você não vai encontrar ninguém normal aqui, viu. Todos nós estamos
aqui por um motivo, um motivo que ninguém sabe, mas todo mundo quer saber,
alguma coisa estranha, porque é o que nós somos, tá acompanhando? – ele pausou.
– É, pela sua cara você não tá acompanhando nada.
Eu fiquei parada, olhando para ele, não sabia o que dizer. Fiquei uns
dois segundos tentando digerir o que ele falou, e quando eu vi que não
adiantava, abri o jogo.
- Filho, eu não entendi nada.
Ele bufou, virou os olhos e sentou-se no chão.
- É o seguinte. Você precisa acelerar o entendimento, compreendeu? –
balancei a cabeça, mesmo não entendendo bulhufas. – Existem pessoas, como nós,
que são perigosas, poderosas, nós conseguimos fazer coisas, você não, porque
nem sabe o que faz, mas todo aqui dentro, sim.
Caramba, eu vou bater nesse cara.
Será que se eu passar 50 anos aqui ele consegue me explicar?
- James, pelo amor de Deus, me explica direito. Eu não estou entendendo
nada. O que significa isso? Que lugar é esse? Quem manda aqui? Quem me prendeu?
E Por que eu estou presa?
- Primeiro você precisa se acalmar. Segundo, eu já esqueci as últimas
perguntas que você fez...
Respirei fundo. Acalmei-me... E
voltei a falar, pausadamente.
- Quem é perigoso?
- Todos nós, todos que estão aqui dentro – ele levantou. – Esse lugar foi
construído para desativar nossos poderes, aqui dentro parecemos humanos. É
horrível – ele dizia gesticulando muito.
- Quem construiu? – perguntei.
Ele se abaixou novamente, olhou para os lados e sussurrou.
- Patrick.
- Quem é ele? – olhei dentro de seus olhos, feliz por estar conseguindo
algumas respostas.
- Ele tem um plano. Ele usa a todos nós. Ele quer os nossos poderes. Você
tem sorte de não saber seu poder, assim quando ele perguntar não estará
mentindo e não será castigada por isso. Sim, ele detecta a mentira, não dá pra
mentir, acredite, eu tentei, não estou mentindo, não minto mais, acho que
aprendi a lição. Verdade...
- Se acalme... Não consigo acompanhar suas palavras... – coloquei as mãos
na cabeça, entre meus cabelos castanhos, tentando organizar meus pensamentos de
uma forma que eu pudesse entendê-lo.
- Às vezes eu falo demais – ele abaixou a cabeça e ficou olhando para as
mãos.
Ele era extremamente perturbado. Mas alguma coisa me dizia que no fundo, James
tinha uma mente brilhante.
- Há quanto tempo você está aqui? – perguntei um pouco com medo da
resposta.
- Quatro anos e três dias. Amanha faz quatro dias, e depois cinco, e
depois seis... Compreende?
Balancei a cabeça. Não era possível. Eu estava anestesiada, não me
conformava com aquilo. James não parecia alguém que deveria ficar tanto tempo
preso. Aquele lugar me assustava, principalmente porque eu não entendia o que
acontecia ali, eu não sabia de nada. E tudo que eu descobria, me assustava.
- Você disse que roubou uma mente? Como isso é possível? – eu não queria
acreditar que ele era louco. Não queria acreditar que aquilo não era uma cadeia
e sim um hospício, pois se esse fosse o caso, eu estaria tão louca como ele...
e eu não me sinto assim, por mais que eu não soubesse quem eu era, ou quem sou
no momento.
Aqueles olhos verdes me encararam. James, então se aproximou ainda mais
da grade, e sussurrou.
- Abra a sua imaginação, mas não abra muito, porque alguém pode entrar
nela. A mente, os sonhos... A distração. E BUM! – me assustei com o grito. – Lá
estou eu.
- Você consegue entrar na mente das pessoas? – ele balançou a cabeça. –
Que incrível.
Para mim, tudo o que ele falava parecia impossível, mas a cada segundo eu
me convencia a acreditar. Eu não tinha ideia de nada do que acontecia e nem
sabia quem eu realmente era. Então tudo o que estava sendo dito podia com
certeza ser verdade. E, além disso, se eu não acreditasse nele, que estava na
mesma situação que eu, em quem eu acreditaria? Talvez o melhor fosse aproveitar
de toda essa loucura para descobrir quem eu sou.
- Então talvez isso seja de ajuda. Pode ler minha mente e me contar quem
eu sou, e como vim parar aqui? – perguntei.
James olhou entre as grades.
- Se você não sabe quem é... Como eu vou saber? – ele levantou uma sobrancelha
e esbugalhou o olho que estava fixo nos meus. – Brincadeira! Eu posso sim.
- Faça isso então! – disse animada.
- Você não escutou nada do que eu disse? – ele balançou a cabeça. – Meu
poder não funciona aqui! Castelo e poder não combinam. Nada de poder no castelo
assombrado.
- O quê? – Não acredito que minha única esperança tinha sido jogada fora.
– Droga! E como eu faço para sair daqui?
- Não faz! – ele riu.
- Não! Eu preciso fazer! – gritei.
- Relaxa filha, depois do segundo ano esse desespero diminui.
- Você não está entendendo! Eu não vou ficar aqui nem mais um segundo! –
levantei e comecei a gritar. – Eu quero sair! Eu exijo sair! Por que estou
aqui? Alguém! Ninguém escuta, não?
Fiquei alguns minutos gritando, mas ninguém se manifestou. Sentei-me
novamente, sentindo-me inútil.
- Que droga! – resmunguei.
- É... Pois é...
Respirei fundo, me acalmando, me conformando.
Olhei para James.
Era engraçado olhar para ele. Ele me lembrava alguém muito conhecido,
talvez de algum filme. Mas quem será?
Olhei para James atentamente, prestando atenção na curvatura de seu
rosto, no cabelo, no modo de se vestir... Eu conhecia aquele jeito...
Ah lembrei! Ele parecia o
Capitão Jack Sparrow de Piratas do Caribe. Realmente muito parecido. Me lembro
de assistir o filme quando era mais nova...
Fiquei feliz por ter lembrado alguma coisa. Mas, por que será que eu me
lembro apenas dessas coisas banais, como meus filmes favoritos, o rosto de
artistas famosos ou coisas parecidas e nem passa pela minha cabeça o meu
próprio nome? Isso me deixava extremamente desconfiada. Eu não teria perdido só
as informações importantes do nada. Tem alguma coisa podre por trás disso. Mas
não era hora de pensar nesse assunto. Por isso resolvi compartilhar minha
opinião com James.
- Você tem cara de pirata do século XIX – eu ri e apoiei minha cabeça na
parede.
- E eu sou.
Engasguei-me. Olhei para ele esperando que ele desmentisse.
- O quê? Eu estava brincando... É brincadeira sua também, não é? –
perguntei.
- Não, tá vendo aquela mulher ali?
Ele apontou para uma cela ali perto, havia nela uma mulher toda de preto
e com a pele bem pálida. Seus olhos fundos e escuros, circulados por uma grande
olheira roxa. Ela mal se mexia.
- Sim, quem é ela?
- Ela tem 1052 anos. O poder dela é nunca envelhecer, e ela pode passar
isso para as pessoas se quiser. A cada três anos ela me procura e passa um
pouco desse poder para mim, e eu nunca morro. Nem envelheço tanto.
- O quê? Espere aí! Ela passa o poder dela pra você?
- Sim.
- E ela simplesmente quer te procurar para isso?
- Claro que não – ele olhou em meus olhos, com um certo sorriso nos
lábios. – De quem você acha que eu roubei a mente?
Esbugalhei os olhos.
Ele percebeu que eu precisava de uma explicação um pouquinho melhor do
que aquela, e começou a falar.
- Ela vivia livremente quando eu a conheci. Naquele dia ela disse que
queria ver o meu navio, e que sempre quis saber como navegar. Pediu para eu
ensiná-la. Ela tinha uma fama ruim, então eu recusei, é claro. Só que ela ficou
extremamente irritada com isso, e mandou sua criatura me atacar. Eu me protegi
e aproveitei para entrar na mente dela. E aí... Bom aí ela literalmente se
ferrou. Na mente dela eu pude aprender uma porção de coisas. Inclusive que ela
não morria. Então eu a obriguei a ficar conectada a mim pelo resto da
eternidade, e a cada três anos ela simplesmente me procura, me entrega um
pouquinho de seu poder e depois vai embora. E assim vamos vivendo. Mas depois a
gente acabou preso nesse castelo. Disseram que eu estava sendo preso por roubar
a mente dela, mas até hoje eu não sei se isso é verdade. Eu desconfio de algumas
coisas. Por exemplo, se eu fui preso por roubar a mente dela, ela foi presa por
quê? Não faz sentido!
- Caramba... É muita informação. Mas... Que criatura ela tinha? O que é
isso?
- Não conhece nossos animais? – ele perguntou como se aquilo fosse um
absurdo.
- Não... – respondi constrangida.
James segurou nas grades e fixou seus olhos nos meus.
- Eu não faço ideia do mundo em que você vivia antigamente, mas aqui
dentro, terá que levar sua fantasia mais a sério. Os sonhos, as criaturas,
coisas que você nunca imaginou existir... Tudo existe. Dependemos de tudo isso,
e dependeremos ainda mais se você quiser sair desse inferno viva.
Minha mão apertava tão fortemente a grade, que eu nem a sentia mais. Com
o coração batendo forte eu escutava tudo com muita atenção, mesmo sem entender.
James virou-se e sentou-se no chão novamente, dessa vez olhando para a parede à
sua frente, e continuou.
- Você entenderá...
E ele fechou os olhos.
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Mais novidades em breve!
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